Introdução
Os erros inatos do metabolismo (EIM) resultam da falta de
atividade de uma ou mais enzimas específicas ou defeitos no transporte de
proteínas, e produzem manifestações em cada órgão, desde a vida fetal à
geriátrica.
A incidência acumulativa internacional dos EIM é de 1:5000
dos recém-nascidos vivos.
A doença de Gaucher (DG) é um EIM do grupo das doenças
lisossômicas de depósito, sendo a mais freqüente do referido grupo. A herança da doença é autossômica
recessiva, portanto, existe risco de recorrência de 25% a cada gestação do
casal de heterozigotos e pode comprometer filhos de ambos os sexos.
A DG é resultante da deficiência da beta-glicosidase ácida ou
beta-glicocerebrosidase, que leva ao acúmulo de glicolipídios nos macrófagos,
principalmente em baço, fígado, medula óssea e pulmão. A DG ainda pode
manifestar-se no sistema nervoso central por acúmulo de metabólitos de
glicoesfingolipídios endógenos no tecido cerebral.
Os macrófagos repletos das inclusões do substrato têm à
microscopia a aparência de “papel amassado” e são as chamadas células de
Gaucher, que podem ser encontradas em medula óssea, fígado ou baço.
O Grupo Brasileiro de Estudos em Doença de Gaucher e outras
Doenças de Depósito Lisossômico (GBDDL) tem o objetivo de estabelecer
diretrizes para o diagnóstico, tratamento e acompanhamento de pacientes com
doença de Gaucher e outras doenças de depósito no Brasil. O grupo surgiu por um
interesse em comum de vários especialistas, é formado por profissionais de área
da saúde com experiência no diagnóstico e tratamento da doença de Gaucher. Para
participar, deve-se entrar em contato com o grupo já estabelecido através do
Fórum DDL (Doença de Depósito Lisossômico – www.forum-ddl.com.br). Há
reuniões periódicas e disponibilidade de membros do grupo de visitar e dar
assessoria aos serviços interessados. O registro brasileiro já existe e é uma
extensão do “Gaucher Registry”, gerenciado pelo ICGG (International
Colaborative Gaucher Group) e está em atividade no país através dos
coordenadores Dr. Ricardo Pires e Dra. Elisa Sobreira. As fichas de registro
estão disponíveis no site www.gaucherregistry.com
Quadro clínico
As manifestações clínicas ou fenotípicas da DG vão depender
do grau de deficiência da beta-glicosidase ácida e do acúmulo dos
glicolipídios, que são variáveis. Existem três fenótipos descritos da DG:
¨ Tipo 1 (forma não neuropática): Afeta crianças e adultos, a idade de
início dos sinais e sintomas é muito variável. A apresentação clínica típica é
hepatomegalia, esplenomegalia levando a hiperesplenismo com progressiva anemia,
trombocitopenia e leucopenia. O quadro é ainda associado a fadiga, cansaço,
plenitude gástrica pós-prandial e retardo de crescimento em crianças. O acúmulo
de glicocerebrosídeo na medula óssea leva à osteopenia, lesões líticas,
fraturas patológicas, dor óssea crônica, crises ósseas, infarto e osteonecrose.
É descrito também uma maior incidência de tumores ósseos nos pacientes com DG.
A progressão do quadro é, em geral, lenta ou variável, e a sobrevida pode ser
normal, na dependência da gravidade das complicações.
O tipo I é o mais freqüente, correspondendo a 95 % dos casos
de DG, tendo uma incidência de 1:10.000 a 1:20.000.
¨ Tipo 2 (forma neuropática aguda): Afeta lactentes com 4-5 meses de idade,
compromete cérebro, baço, fígado e pulmão. O quadro neurológico é grave, com
múltiplas convulsões, hipertonia, apnéia e progressivo retardo mental. A
incidência descrita é menor que 1:100.000. A evolução é rápida, com morte nos
primeiros dois anos de vida, em geral pelo envolvimento pulmonar.
¨ Tipo 3 (forma neuropática crônica): Afeta crianças e adolescentes, a
idade de início é variável, mas em geral no pré-escolar. Compromete cérebro,
baço, fígado e ossos. A evolução do quadro neurológico é variável, mas menos
grave que o do tipo II. A incidência descrita é menor que 1:100.000. A
sobrevida se dá até a segunda ou terceira década de vida.
Diagnóstico
A suspeita de DG é clínica e o método definitivo de
diagnóstico é a dosagem enzimática da atividade da beta-glicosidase ácida.
Mais de 150 mutações no ácido desoxirribonucleico (DNA), no
cromossomo 1 (1q2.1), têm sido descritas, porém existem hoje sete alterações
nucleotídeas que respondem pela maioria dos casos. Embora não exista uma
perfeita correlação entre o genótipo (tipo de mutação) e o fenótipo, pelo menos
é possível distinguir a forma não neuropática da neuropática. A L444P em estado
homozigoto (o paciente recebeu a mesma mutação ou alelo do pai e da mãe) está
mais associada a sintomas neurológicos precoces, podendo observar-se nos tipos
II e III. O alelo N370S está associado com doença não neuropática.6,7,10 É
importante realizar a pesquisa das mutações nos pacientes, pais e irmãos, para
conhecermos melhor a DG no nosso meio, fazer previsões de tratamento e realizar
um aconselhamento genético mais seguro.
Critérios de inclusão para o protocolo de tratamento com reposição enzimática
1. Diagnóstico confirmado de doença de Gaucher, pela dosagem
da atividade enzimática da beta-glicosidadese ácida em leucócitos.
2. Portador de doença de Gaucher do tipo I ou III. Nos
pacientes do tipo III, o tratamento deve ser introduzido precocemente, antes de
quadro neurológico grave estar estabelecido.
Além dos critérios 1 e 2 descritos acima, deve estar presente
pelo menos uma das situações abaixo:
¨ Apresentar evidências clínicas de comprometimento hepático ou esplênico
ou esplenectomia prévia
¨ Apresentar anemia com hemoglobina abaixo de 2 g/dl dos níveis previstos para sexo e idade
¨ Apresentar plaquetas abaixo de 100.000 /mm3
¨ Apresentar evidência radiológica de doença óssea (osteopenia, deformidade em frasco Erlenmeyer, osteoartrose, osteoesclerose, osteoporose, fratura patológica, necrose asséptica)
¨ Apresentar dor óssea ou crises ósseas
¨ Apresentar retardo de crescimento definido como: crianças com estatura abaixo do percentil 3, abaixo do esperado para o potencial genético da média das alturas dos pais, ou decréscimo na velocidade de crescimento.
¨ Apresentar sintomas como dor abdominal, fadiga, fraqueza ou caquexia e comprometimento da qualidade de vida
¨ Comprometimento de outros órgãos (coração, rins e pulmão)
¨ História de irmão/irmã com doença de Gaucher tipo III com presença de genótipo idêntico
¨ Apresentar anemia com hemoglobina abaixo de 2 g/dl dos níveis previstos para sexo e idade
¨ Apresentar plaquetas abaixo de 100.000 /mm3
¨ Apresentar evidência radiológica de doença óssea (osteopenia, deformidade em frasco Erlenmeyer, osteoartrose, osteoesclerose, osteoporose, fratura patológica, necrose asséptica)
¨ Apresentar dor óssea ou crises ósseas
¨ Apresentar retardo de crescimento definido como: crianças com estatura abaixo do percentil 3, abaixo do esperado para o potencial genético da média das alturas dos pais, ou decréscimo na velocidade de crescimento.
¨ Apresentar sintomas como dor abdominal, fadiga, fraqueza ou caquexia e comprometimento da qualidade de vida
¨ Comprometimento de outros órgãos (coração, rins e pulmão)
¨ História de irmão/irmã com doença de Gaucher tipo III com presença de genótipo idêntico
Tratamento com reposição enzimática
¨ Imiglucerase: cada frasco de 200 UI ou 400 UI deve ser reconstituído em
5,1 ml ou 10,2 ml de água destilada respectivamente e posteriormente diluído em
soro fisiológico para um volume final de 200 ml
¨ Via e freqüência: infusão intravenosa a cada 14 dias
¨ Dose inicial: de acordo com a classificação abaixo:
• Crianças e adultos:
– 30 UI/kg de peso corpóreo/por infusão
• Crianças e adultos de alto risco:
– 60 UI/kg de peso corpóreo/por infusão
• Crianças com DG do tipo III
– 120 UI/kg de peso corpóreo/por infusão
¨ Via e freqüência: infusão intravenosa a cada 14 dias
¨ Dose inicial: de acordo com a classificação abaixo:
• Crianças e adultos:
– 30 UI/kg de peso corpóreo/por infusão
• Crianças e adultos de alto risco:
– 60 UI/kg de peso corpóreo/por infusão
• Crianças com DG do tipo III
– 120 UI/kg de peso corpóreo/por infusão
¨ Pacientes de alto risco
• Doença óssea em atividade
• Fígado maior do que 2,5 vezes o valor normal
• Baço maior que 15 vezes o valor normal
• Plaquetas abaixo de 60.000 /mm3 ou episódios de sangramento documentados
• Anemia sintomática ou Hb abaixo ou igual a 8 g/dL
• Doença óssea em atividade
• Fígado maior do que 2,5 vezes o valor normal
• Baço maior que 15 vezes o valor normal
• Plaquetas abaixo de 60.000 /mm3 ou episódios de sangramento documentados
• Anemia sintomática ou Hb abaixo ou igual a 8 g/dL
• Doença hepática grave
• Doença renal grave
• Limitação funcional grave caracterizada por doença incapacitante
• Qualquer condição clínica concomitante que possa exacerbar ou complicar a doença de Gaucher.
• Doença renal grave
• Limitação funcional grave caracterizada por doença incapacitante
• Qualquer condição clínica concomitante que possa exacerbar ou complicar a doença de Gaucher.
A dose inicial em adultos e crianças de alto risco deve ser
mantida por pelo menos 24 meses, garantindo assim melhora eficaz e prevenção de
complicações graves seguindo sempre o juízo clínico do médico que acompanha o
paciente.24-27
O cuidado deve ser muito mais intenso quando o paciente é
criança e já apresenta comprometimento ósseo, mostrando assim a gravidade de
seu quadro; este tipo de doente merece especial atenção para prevenção de
complicações mais graves na vida adulta, que podem levar até a limitação
incapacitante.7,13,28 Outra peculiaridade da criança é que ela está em fase de crescimento e o
comprometimento da estatura final é descrito nos casos não tratados ou tratados
com subdoses.14,29
¨ Dose de manutenção:
• Diminui-se a dose nas crianças para até 30 UI/kg de peso por infusão caso tenha havido normalização dos critérios de inclusão.
• Diminui-se a dose nos adultos para até 20 UI/kg de peso por infusão caso tenha havido normalização dos critérios de inclusão.
• Diminui-se a dose nas crianças para até 30 UI/kg de peso por infusão caso tenha havido normalização dos critérios de inclusão.
• Diminui-se a dose nos adultos para até 20 UI/kg de peso por infusão caso tenha havido normalização dos critérios de inclusão.
¨ Critério de melhora para diminuição da dose:
• Normalização de todos os critérios utilizados para sua inclusão
• Melhora na qualidade de vida
• Normalização de todos os critérios utilizados para sua inclusão
• Melhora na qualidade de vida
Acompanhamento clínico e laboratorial
As avaliações abaixo sugeridas devem ser realizadas em todos
os pacientes com DG em tratamento com reposição enzimática (TRE) ou não:
¨ Monitoramento dos pacientes com história clínica e exame físico a cada
3/6 meses
¨ Hemograma completo, fosfatase ácida total, enzimas hepáticas a cada 3/6 meses
¨ Avaliação volumétrica do fígado e baço, preferencialmente por tomografia computadorizada ou ressonância magnética; se não for possível um destes exames, realizar ultra-sonografia abdominal a cada 12 meses
¨ Avaliação radiológica do esqueleto e/ou densitometria óssea a cada 12 meses ou a critério médico. Pode ser realizada, quando possível, ressonância magnética ponderada T1 e T2 do quadril até os joelhos.
¨ Hemograma completo, fosfatase ácida total, enzimas hepáticas a cada 3/6 meses
¨ Avaliação volumétrica do fígado e baço, preferencialmente por tomografia computadorizada ou ressonância magnética; se não for possível um destes exames, realizar ultra-sonografia abdominal a cada 12 meses
¨ Avaliação radiológica do esqueleto e/ou densitometria óssea a cada 12 meses ou a critério médico. Pode ser realizada, quando possível, ressonância magnética ponderada T1 e T2 do quadril até os joelhos.
O tratamento dos pacientes portadores de DG, como em outros
erros inatos do metabolismo, deve constar de freqüente atualização da
literatura por parte dos profissionais, pois um grande número de pesquisas vem
sendo realizado no mundo visando à qualidade e eficácia da terapêutica.15
São inúmeros os problemas emocionais e sociais que os pacientes portadores de doenças raras enfrentam no seu dia a dia e, por esta razão, devem receber um acompanhamento multiprofissional, consistindo além do clínico, do aconselhamento genético periódico, suportes psicológico, fisioterápico e nutricional.
São inúmeros os problemas emocionais e sociais que os pacientes portadores de doenças raras enfrentam no seu dia a dia e, por esta razão, devem receber um acompanhamento multiprofissional, consistindo além do clínico, do aconselhamento genético periódico, suportes psicológico, fisioterápico e nutricional.
Registro de dados
Deve existir um registro, como vem sendo realizado em outros
países, com o nome do médico responsável, de todos os pacientes portadores de
DG, em TRE ou não, porque só desta forma poderemos conhecer a evolução de
nossos pacientes com ou sem o tratamento e, a partir destes dados, modificar ou
não protocolos de tratamento e acompanhamento de acordo com a experiência
brasileira.
Comentários adicionais
Quando se trabalha com doenças individualmente raras, como
são os erros inatos do metabolismo, devemos sempre buscar o conhecimento básico
em textos clássicos, que serão o início da trilha que nos levará a um melhor
conhecimento da doença. A literatura científica é unânime em
reconhecer os benefícios a TRE nos pacientes portadores de DG porém existem controvérsias quanto à
dose da enzima recombinante a ser utilizada.
Devido ao custo da enzima, existem inúmeros trabalhos tentando mostrar efeitos similares com baixas doses, porém há falta de rigor nesses relatos, que não separam pacientes graves de leves, adultos de crianças e até colocam no estudo portadores de DG que nem têm indicação de fazer a TRE. O uso da TRE com baixas doses em pacientes com DG do tipo I tem levado ao aparecimento de graves complicações ósseas nos mesmos.
Devido ao custo da enzima, existem inúmeros trabalhos tentando mostrar efeitos similares com baixas doses, porém há falta de rigor nesses relatos, que não separam pacientes graves de leves, adultos de crianças e até colocam no estudo portadores de DG que nem têm indicação de fazer a TRE. O uso da TRE com baixas doses em pacientes com DG do tipo I tem levado ao aparecimento de graves complicações ósseas nos mesmos.
No futuro, a partir do maior conhecimento dos pacientes de
cada região do mundo e dos efeitos da TRE a longo prazo, a dose poderá ser
racionalmente individualizada, levando em conta as necessidades do paciente.
O mais importante é que, ao decidir sobre o tratamento e
acompanhamento do paciente com DG, o médico avalie os dados disponíveis na
literatura e os resultados da sua experiência, pesando as vantagens e
desvantagens para a saúde do paciente, mesmo tendo consciência do alto custo da
medicação.
Novas tentativas terapêuticas estão sendo estudadas e é importante que elas sejam
incrementadas, para que no futuro nenhum paciente seja privado de ter uma
melhora tão fantástica na qualidade da sua vida, como a que temos observado em
nossos pacientes com DG que recebem a TRE, e isto realmente não tem preço.
O Consenso Brasileiro do Tratamento da Doença de Gaucher
deverá ser revisto em 2-3 anos, quando teremos maior experiência adquirida com
o acompanhamento dos nossos pacientes ou quando surgirem novidades na
literatura científica quanto à terapêutica da DG que possa beneficiar nossos
pacientes.
http://www.scielo.br/pdf/rbhh/v25n2/v25n2a04.pdf
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